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A Cela

1

A cela é fria e escura, sem janelas e grades que a separam do resto do mundo. No lugar existe uma porta de aço maciço com cerca de dez centímetros de espessura e sentado ao canto está um homem jovem, com cerca de vinte e cinco anos de sonhos e dúvidas. Os cotovelos apoiados no joelho e uma das mãos sustentando a face suja de olhos semicerrados e profundos. Em alguns momentos parece que as lembranças o consomem mais que a fome e a sede. Há dias (ou seriam semanas?) perdeu a noção do espaço e tempo e a mente nessas ocasiões tende a abrir espaço para a loucura e insanidade, mas no caso dele será que já não estaria familiarizado com essas emoções desde o nascimento?
Por hora esqueça isso, esqueça os esboços de vidas passadas, pois a necessidade do agora é mais urgente. Observe atentamente esse homem e como seus olhos se abrem e a pupila se dilata, ao mínimo movimento do outro lado da cela. São olhos de caçador e sua necessidade é nobre: fome. Como um gato o homem na cela se move cautelosamente, com as mãos ao chão, parecendo calcular cada passo. Se ele tivesse um rabo peludo, aposto que esse estaria se movendo como uma cobra de um lado a outro, sorrateiramente, mostrando sua adrenalina e excitação. A presa caminha encostada a parede da cela, caçando também seu próprio alimento, resto de comidas ou quem sabe até uma barata fresca. Quando a pobre presa nota a presença de seu predador é tarde demais, o homem agora jaz com o rato nas mãos, que esperneia e guincha a cada mordida no ventre gordo que o caçador lhe dá, suas entranhas e tripas saem e escorrem pelos orifícios e seus olhos saem de órbita, até que finalmente a presa se cala, para sempre.
Até onde um homem poderia chegar à troca de alimento, quando esse se faz ausente por um longo período? Pergunte ao homem que agora de cócoras retira com as mãos ensanguentadas as entranhas de um rato gordo e tenta aproveitar ao máximo a carne que lhe é oferecida, com o sangue da vitima escorrendo pelo canto da boca e descendo pelo queixo encharcando a barba rala e chegando ao pescoço.  Pergunte a ele e provavelmente ele dirá que pode se chegar muito longe quando as situações são extremas.


2

Além do tempo que se esvai sem poder ser calculado, a vida do caçador confinado também acaba a cada minuto. Não tendo percepção de dia ou noite, preso nesse cubículo, a única visão para fora é uma portinhola na parte superior da porta de aço, da qual dá para um corredor horizontal, com iluminação precária. Os homens que passavam duas vezes ao dia para jogar um prato de ração humana através de uma fenda já não o fazem mais. A única fonte de água é uma torneira enferrujada que cospe jatos cada vez menores e com mais barrentos de água marrom.
Esse homem de 1,80m que há poucos meses era saudável e corado apresenta agora uma versão esquálida e pálida de si mesmo. O cabelo antes liso e curto está comprido e embaraçado. Os piolhos saltam como artistas circenses, indo da barba ao cabelo e vice e versa. A luxúria de um banho quente agora faz parte de um sonho, assim como tantas outras coisas.
O que se pode fazer em uma cela que não contém mais que uma torneira, uma privada, um colchão e a expectativa de vida diminuindo drasticamente a cada dia, na mesma proporção que a loucura toma espaço?  O que você faria nessas situações? O moribundo na cela faz o que se pode fazer, ele pensa. Pensa para se manter são. Pensa para viver.
Teriam lhe abandonado para morrer sozinho na cela pelo que seu irmão havia descoberto? Ou os homens da ração sumiram após os terremotos incomuns que ocorreram? É uma resposta razoável, sendo que terremotos nessa parte do mundo são extremamente raros. Mas essas são todas perguntas secundárias, a principal é: como vai sair dali?
Com esses pensamentos percorrendo sua mente feito um turbilhão, ele dorme.



3


As paredes da cela escura agora são preenchidas por árvores de clima tropical, o cheiro de mofo e urina dá espaço para o aroma da relva e do orvalho sobre as folhas. O caçador corre. Uma floresta bem conhecida por ele. Os casebres de madeira intercalados por enormes árvores vão passando ao seu redor enquanto avança cada vez mais rápido. A vegetação rasteira de folhas verdes e úmidas quase não faz barulho com os passos fortes de suas botas de couro cru. Em suas mãos usa luvas de lenhador e empunha um machado gasto, mas afiado. O suor respingando de sua face de beleza rústica demonstra aflição. Segurando-se no capuz de seu colete cavalga um pequeno macaco-prego. Um barulho crescente de passos começa a surgir atrás enquanto o homem com o macaco passa pelos olhos mecânicos dispostos nas árvores. Ele cruza a direita, com o macaco em suas costas, e pula em uma fachada íngreme que se abre em duas trilhas formando um “v” entre as folhas e troncos no chão. Pegando o caminho da direita continua correndo até chegar a um corredor entre as árvores que se aninham formando um arco. O caminho converte para direita, mas ele continua em frente, cruzando a vegetação baixa. Os passos continuam atrás, só que agora mais distantes. Ele se debruça em uma pequena vala escondida na relva e permanece em silêncio, espreitando pelo caminho recém-feito para verificar se os perseguidores estão próximos. Não consegue enxergá-los, porém a vantagem de conhecer a floresta está do seu lado.
Suas luvas estão besuntadas de sangue fresco que banham também o machado de corte afiado. Ele espera em silêncio enquanto seu coração dá batidas tão fortes que ele deseja que só sejam audíveis aos seus próprios ouvidos. A mão direita desliza e segura o cabo do machado enquanto ele avalia o cenário que já vira inúmeras vezes. Tudo está em seu devido lugar. Há uma enorme cerca-jaula as suas costas que divide a mata em duas partes, o lado de dentro e o de fora. Ele sempre fora certo de uma coisa: estava na parte de dentro, assim como os de sua criação. Uma enorme placa amarela desgastada, presa na grande cerca alerta um enorme “CUIDADO”, seguido por letras menores: “Não encoste na cerca. Alta voltagem. Prezamos por sua segurança. A Amazônia é feita para você”. A sua direita olha atento para uma palmeira de folhas longas e arbustos no sub-bosque. Ele confere o macaco em suas costas. O pequeno animal arfa de expectativa e adrenalina, assim como seu dono. Uma corrente balança em seu pequeno pescoço com as inscrições “NI03E32 Lote874”.
Os segundos passam e o barulho de passos volta a ficar cada vez mais próximo. Agora algumas vozes são audíveis e podem-se identificar frases “Por ali” ou “Peguem-no vivo”. O homem e o macaco esperam em atento silêncio. Poderiam esperar uma vida toda. A barba não existe, mas os olhos de caçador estão lá, espreitando os predadores se aproximarem. Nesse momento eles também são presas, mas não sabem disso.
Um homem aponta por detrás das árvores, seguindo a trilha que agora converte para a esquerda do caçador escondido na vala. O homem para e observa, tentando ver o que olhos normais não enxergariam. Está vestindo algo que pode ser um uniforme militar preto, com vários adornos dourados agrupado do lado esquerdo do peito, provavelmente insígnias. Usa estranhos óculos que parecem se estender para o topo da cabeça, formando um capacete. Mais dois homens despontam na retaguarda do primeiro, um deles com um cão labrador na coleira, ambos vestidos como o que os comanda, porém sem as insígnias. O cão fareja em direção ao caçador. Esse por sua vez alisa inconscientemente o cabo do machado com o polegar da mão direta, sinalizando ansiedade. Com a mão esquerda eleva o dedo indicador ao ar, seguido do dedo médio e por último o anelar e nesse momento uma flecha corta o ar zunindo e para cravada na testa do militar com o cachorro, quebrando os óculos de lentes vermelhas. Esse dá seu último comando, caindo abatido no chão: “Ataque”. Obedecendo as ordens de seu póstumo adestrador o cão avança salivando, com seu faro impecável.
O caçador se levanta e arremessa o machado que rodopia no ar até acertar o outro soldado raso que cai gemendo no chão. Nesse momento o labrador dá seu salto-ataque mirando o pescoço do homem com o macaco, que por reflexo se protege com o antebraço esquerdo e cai ao chão. O macaco sobe no dorso canino e crava mordidas, simultaneamente dando socos como um primata tentando quebrar uma noz com uma pedra. O cão, sem se importar com o ataque do primata, faz movimentos bruscos de negativa com a cabeça ostentando o braço do homem com as presas afiadas. O caçador pega uma faca de um coldre rústico de couro preso à cintura e crava no pescoço do labrador, que imediatamente solta seu braço e pula dando ganidos altos. O macaco continua em suas costas, parecendo um peão em cima de um touro.
Simultaneamente a esses momentos, que duraram pouco mais que alguns segundos, um índio - com um cocar de penas vermelhas e azuis e corpo pintado - sai por detrás do sub-bosque da palmeira, empunhando um arco, e com sua habilidade ímpar de guerreiro, lança mais uma flecha, agora em direção ao homem de alta patente. A flecha crava em seu ombro direito.  Este aponta uma arma de choque empunhada com as duas mãos, ignorando a flecha e dispara certeiramente no peito nu do índio, que cai convulsivamente, urinando e praguejando num dialeto que poderia ser tupi-guarani.
O caçador se levanta com o macaco agora ao seu lado e o índio inconsciente ao outro. Nesse momento vários homens de preto aparecem com armas apontadas. Com a cabeça erguida e em movimento de rendição, o caçador levanta ambos os braços, com um único pensamento: “Meu irmão está a salvo?”.
 Um alarme começa a soar, aumentando gradativamente, quase a ponto de estourar os tímpanos...

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